Esporte & Direito

Portões fechados é punição?

A pena de “portões fechados” à luz do ordenamento jurídico brasileiro

Escrito por Lívia Borges

14 AGO 2023 - 09H00

Daniel Ramalho / Vasco

Que o futebol brasileiro tem a violência como protagonista nas torcidas é de fato notório público, entretanto, a análise jurídica dessa quinzena não gira em torno deste mérito, tampouco analisar seus respectivos culpados, mas sim, aprofundar acerca da constitucionalidade da pena aplicada aos times, punindo-os de jogarem com “portões fechados”.

Para exemplificar a análise, trago o caso concreto envolvendo o Vasco SAF após derrota para o Goiás, na 11ª rodada do Brasileirão, em que houve tentativa de invasão do campo por parte de alguns torcedores cruzmaltinos. Na súmula do jogo, o árbitro da partida, Jean Pierre Gonçalves, relatou que houveram bombas, sinalizadores e outros objetos atirados no gramado, depredação do carro da arbitragem e confronto entre a Polícia Militar e torcedores.

Como punição pela confusão, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva– STJD, decidiu pela aplicação de multa de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) e a perda de 04 (quatro) mandos de campo, a ser cumprida com portões fechados.

Importante iniciar a referida análise citando o princípio da legalidade.

Na Constituição Federal, inciso II do art. 5°, ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei.

E, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva – CBJD, em seu inciso VII do art. 2°, também faz previsão ao referido princípio.

                                        “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

                                        II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;”

                                        Art. 2º A interpretação e aplicação deste Código observará os seguintes princípios, sem prejuízo de outros:

                                        VII - legalidade;”

Nesse sentido, para que a punição de “portões fechados”, dada pelo STJD ao Vasco SAF, seja constitucional, é necessário que haja previsão legal acerca desta. Sendo assim, passamos a análise aos dispositivos legais que regulamentam a prática desportiva no Brasil.

A Lei 9.615 de 1998, comumente conhecida como Lei Pelé, é a norma jurídica brasileira que institui as normas gerais sobre o desporto, inclusive quanto às penas.

                                        “Art. 50. A organização, o funcionamento e as atribuições da Justiça Desportiva, limitadas ao processo e julgamento das infrações disciplinares e às competições desportivas, serão definidos nos Códigos de Justiça Desportiva, facultando-se às ligas constituir seus próprios órgãos judicantes desportivos, com atuação restrita às suas competições.

                                        § 1o As transgressões relativas à disciplina e às competições desportivas sujeitam o infrator a:

                                        I - advertência;

                                        II - eliminação;

                                        III - exclusão de campeonato ou torneio;

                                        IV - indenização;

                                        V - interdição de praça de desportos;

                                        VI - multa;

                                        VII - perda do mando do campo;

                                        VIII - perda de pontos;

                                        IX - perda de renda;

                                        X - suspensão por partida;

                                        XI - suspensão por prazo.”

No mesmo sentido, estabelece o Código Brasileiro de Justiça Desportiva:

                                        “Art. 170. Às infrações disciplinares previstas neste Código correspondem as seguintes penas:

                                        I - advertência;

                                        II - multa;

                                        III - suspensão por partida;

                                        IV - suspensão por prazo;

                                        V - perda de pontos;

                                        VI - interdição de praça de desportos;

                                        VII - perda de mando de campo;

                                        VIII - indenização;

                                        IX - eliminação;

                                        X - perda de renda;

                                        XI - exclusão de campeonato ou torneio.”

Conforme vemos, tanto a Lei Pelé quanto o Código de Justiça Desportiva, estabelecem as espécies de penalidades na forma de rol taxativo (numerus clausus). Isto é, existe o conjunto hipóteses de punição, que é completo e definitivo, não admitindo portanto a inclusão de outros elementos que não estejam explicitamente mencionados na lista.

Na fundamentação do Acórdão, o STJD menciona que a punição de “portões fechados” foi dada por infração ao art. 213, incisos I e III do Código Brasileiro de Justiça Desportiva.

                                        “Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os integrantes desta 3ª Comissão Disciplinar do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, em dar provimento a denúncia e, por unanimidade, multar o clube VASCO DA GAMA SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL em R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) e por maioria de votos aplicar a pena de 04 partidas de perda de mando de campo, com portões fechados por infração ao Art. 213, I e III do CBJD contra o voto do relator, Dr. RODRIGO RAPOSO e do auditor Dr. CLÁUDIO ROBERTO DINIZ, que divergiam apenas na quantidade de perdas de mando de campo, aplicando 07 (sete) partidas e do presidente que aplicava 05 (cinco) partidas de perda de mando de campo.” (GRIFO NOSSO)(GRIFO NOSSO)

O artigo citado, prevê que os clubes que deixarem de tomar providências para previnir e reprimir desordens, invasões do campo e/ou lançamento de objetos, poderão sofrer sanções pecuniárias, e, caso haja elevada gravidade, serem punidos com a perda do mando de campo.

                                        “Art. 213. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir:

                                        I - desordens em sua praça de desporto;

                                        II - invasão do campo ou local da disputa do evento desportivo;

                                        III - lançamento de objetos no campo ou local da disputa do evento desportivo.

                                        PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

                                        § 1º Quando a desordem, invasão ou lançamento de objeto for de elevada gravidade ou causar prejuízo ao andamento do evento desportivo, a entidade de prática poderá ser punida com a perda do mando de campo de uma a dez partidas, provas ou equivalentes, quando participante da competição oficial.”

É importante ressaltar que a punição de perda ao direito de mando de campo, significa que o “mandante” está impedido de indicar o local onde será realizada a partida, por um determinado número de partidas, ficando a cargo da entidade promotora da competição a indicação de onde essas disputas serão realizadas. Portanto, a “perda de mando de campo” e “portões fechados” não se confundem, visto que este último trata-se da perda do direito da entidade punida em receber torcida em seu estádio, mas ainda possuindo o direito de indicar o local que será realizada a partida.

A perda de mando de campo está prevista em rol taxativo, tanto na Lei Pelé, quanto no Código de Justiça Desportiva, sendo neste último, indicado a forma de cumprimento desta punição.

                                        “Art. 175. A entidade de prática punida com a perda de mando de campo fica obrigada a disputar suas partidas, provas ou equivalentes, na mesma competição em que ocorreu a infração.

                                        § 1º Quando a perda de mando de campo não puder ser cumprida na mesma competição, deverá ser cumprida em competição subsequente da mesma natureza, independentemente da forma de disputa.

                                        § 2º A forma de cumprimento da pena de perda de mando de campo, imposta pela Justiça Desportiva, é de competência e responsabilidade exclusivas da entidade organizadora da competição, torneio ou equivalente, devendo constar, prévia e obrigatoriamente, no respectivo regulamento.” (GRIFO NOSSO)

Diante do previsto, a perda de mando de campo será cumprida na mesma competição em que ocorreu a infração, e a forma de cumprimento é de competência da entidade organizadora da competição, a qual deve estar regulamentada.

De volta ao caso concreto trazido, a entidade organizadora do Campeonato Brasileiro é a Confederação Brasileira de Futebol – CBF, sendo assim, a forma de cumprimento da pena de perda de mando de campo está regulada pelo Regulamento Geral das Competições – RGC, de 2023, que tem o dever de apenas dispor sobre como a pena deverá ser cumprida, quem determinará o local da partida e outras disposições formais acerca da perda de mando de campo, não podendo portanto inserir aumento ou nova penalização ao clube.

Um último ponto a ser destacado antes da conclusão, é a respeito da utilização do Código Disciplinar da FIFA. De certo, é a entidade máxima do futebol mundial, e inclusive possui previsão em seu rol, também taxativo, tanto da pena de perda de mando de campo, quanto da pena de portões fechados, que são mencionadas em artigos diferentes por se tratarem de punições diferentes. Porém, insta ressaltar, que a FIFA limita a aplicação de seu Código somente às partidas e torneios organizados por ela.

Diante de todo o exposto, concluímos pela inexistência da pena de “portões fechados” na Lei Pelé e no Código Brasileiro de Justiça Desportiva, na forma citada pelo Superior Tribunal de Justiça Desportiva – STJD, na fundamentação da decisão que puniu o Vasco da Gama Sociedade Anônima de Futebol.

Nota: A decisão foi dada pelos auditores da 3ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol, no processo n° 478/2023, que possui Acórdão público.

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Por Lívia Borges, em Esporte & Direito

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